Era o 9 de Novembro de 1986. Talvez seja uma coisa de data, essa, vai saber. Foi num 10 de Novembro que derrubaram o muro de Berlim também. Mas aqui, há 25 anos, meus pais levavam meu irmão mais velho para uma de suas primeiras manifestações políticas, na praça da Sé, por eleições diretas. A Constituinte estava em disputa e mamãe havia dado um duro enorme, com outros colegas da USP, pra que esse assunto pudesse antes de mais nada entrar em pauta. É, pautar discussão de constituição já foi crime, igualzinho pautar a discussão da regulamentação da produção e consumo da maconha hoje. Divago. Esse texto nem é pra ser sobre maconha.
Talvez a vida política agitada de uma infância com papai sindicalista e mamãe trotskista tenha me ajudado, mas é quase como se eu, dali de dentro, pudesse sentir os gritos pela liberdade, a vontade e a esperança de construir essa novidade chamada Brasil, no final do século XX. Era eu, ali, a esperança - um feto já desenvolvido, na enorme barriga da pequena mãe, prontinha no final de um ciclo, começo de outro. Nascimento. O meu e o do Brasil, quase junto, quase igual.
A grávida, o companheiro e o menino de um ano no cangote do pai. As bandeiras vermelhas, brancas, fortes. As palavras de ordem, a Catedral quase apagada lá no fundo. Um ou outro maluco sobre o marco zero, ao redor da fonte, nas pequenas ruas que desembocam ali, num centro de mundo todo ele. A praça.
O primeiro ato político é nascer.
Naquele 9 de Novembro de 1986 era tudo que eu queria. Ganhar status de indivíduo. Indivídua, melhor.
Chegando na pequena casa geminada numa Vila Madalena sem bares, sem prédios e forrada de praças, sorveterias, parques, padarias, edículas e casinhas de fundo, Vila Minha Madalena que hoje não é. Vírgula, chegando lá, foram pra cama. A grávida se ajeitava de um lado pro outro, até que encontrou uma posição mais confortável. O menino dormia bem, cansado daquelas luzes, do barulho, e provavelmente satisfeito com a diversão que sempre foi, a mim e a ele - e mais tarde um pouco à próxima -, a manifestação política. É um ato de amor, uma memória de carinho.
Da manifestação ao sono, era minha tentativa bruta de romper com aquela realidade, o útero. Não foi fácil. Não foi confortável. Não foi sem dor. Eu tentava com força, até que toda aquela água foi embora e começaram os chacoalhões. A grávida caminhava, o companheiro desesperava, enfiava as roupas numa malinha, telefonava pra ela, sim, ela, a mãe dele, de sobreaviso. Ela chegou para o menino dormindo e lá se foram eles, grávida e companheiro, no fusca azul-calcinha de placa KI onde muito andei em pé e sem cinto de segurança. Nunca morri.
No horário de verão já era a virada do 9 para o 10 de Novembro de 1986, mas no mapa astral o dia 10 ainda iria começar. O fusquinha atravessava o rio Pinheiros pela única possibilidade existente à época, e rumava com urgência para Lá. Lá, onde nasci. Lá, da tristeza que tem me cortado o coração, logo ontem, logo hoje, logo essa semana quase exatamente 25 anos depois. A Universidade de São Paulo e seu Hospital Universitário, onde meu irmão nascera em meio a uma greve dos funcionários no ano anterior.
Há 25 anos atrás, nasci, dentro da USP.
Quase exatamente 25 anos depois, esse presente - a tristeza de uma semana em que essa USP, tão minha, sofre. Ou a alegria, quem sabe, de números gigantescos de estudantes reunidos em assembléia.
A primeira notícia, ao chegar, é explicada hoje com um sonho. Semanas antes eu me posicionava pra nascer. A grávida sonhou com uma cachoeira, água virando e era eu, Sandman of my own, provocando essa reviravolta. Sempre gostei, aliás, de reviravolta e revés. Bem se vê. Mas havia outra notícia ainda.
O momento em que me tiraram dali - e logo eu, que sou metida a fortona durona inquebrável, não consegui sair sozinha, vejam só - foi quando comuniquei a que tinha vindo. As camadas de pele entre as pernas não eram suficientes pra que eu fosse mulher. Mas a grávida era. Porque quando nasci virei filha e ela mãe. Mãe de uma família cheia de mães. E neta de avós cheias de mães também. A carne entre as pernas só confirmava: nascia mais uma de nós.
Há 25 anos atrás, no 10 de Novembro de 1986,
após uma manifestação por eleições diretas,
depois de décadas de ação militar cotidiana,
depois de amigos presos e torturados,
depois de viagens e descobertas,
depois do primeiro filho,
depois de um casamento e do começo de outro,
depois de estudantes presos um atrás do outro todos os dias ali, onde nasci, no meu Lá,
eu nascia.
No 10 de Novembro de 2011,
após uma ação de 400 policiais no meu Lá,
após uma violação de direitos pelo Estado (e depois, bem depois de 1986),
depois de ser mulher,
de perder a avó e sentir saudades todos os dias,
depois do primeiro casamento,
da gravidez das gatas,
eu luto
e escrevo.
Que as crianças minhas e de outrem que virão não podem achar normal terem seus direitos tolhidos.
Inclusive aquele à democracia.
Espero que não tarde o dia em que você possa celebrar seu aniversário de outro jeito. :)
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSe disser que não chorei, é apenas uma omissão a fim de manter meu lado forte.
ResponderExcluirNão chorei.
Não chorei e achei a crônica, conto, causo, história mais bela lida nos últimos tempos. Hoje (ou daqui a pouco) você faz 25 anos e quem ganhou o presente fomos nós. Primeiro pela excelente amiga, dedicada e sábia que vem acompanhando não só eu, mas muitos. Segundo, porque apresenta com essa crônica seu eu suave e poético, revelador do ser e da relação com o mundo. Como uma canção doce e libertadora.
Você conseguiu traçar uma definção exata de si: a mulher entre a revolução e a poesia. Veio para encantar o mundo e transformá-lo.
Má, só temos que agradecer por você e estar aqui conosco, por temos o privilágio de conhecê-la e para desejarmos que você viva eternamente, ao menos mais que cada um de nós, porque eu - e creio que muitos outros - não querem viver um dia sem a sua preciosa existência.
Feliz Aniversário,
Beijos,
Andrea Azevedo