quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quero fazer mestrado. E agora? (parte II)

Se perdeu, leia a parte I aqui. Estes posts foram sugeridos por uma leitora de apelido Miss Little e pretendem ser uma ajuda a quem está pensando em se embrenhar pela experiência de fazer um mestrado. Espero que ajude!

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4. Projeto ou Plano de Estudos
Então você já definiu que quer fazer mestrado, já sabe o por quê, já escolheu o assunto a investigar, o programa (ou os programas) e possíveis orientadores/as. Muito bem. Agora é hora de botar a mão na massa. Ou quase isso.

Pra começar é importante dar uma boa olhada nos requisitos da seleção para o programa ou os programas escolhidos. Embora alguns programas no Brasil e muitos no exterior não peçam projetos de pesquisa, sempre há alguma espécie de carta ou texto ou plano de estudos que deve ser informado. A banca não te conhece e suas intenções precisam estar claras sobre o que é que, afinal de contas, você pretende fazer ali. No caso das seleções que pedem projeto de pesquisa, esta também uma forma dos pesquisadores se interessarem em orientar você, o que é bem importante, diga-se de passagem. Esta elaboração é essencial.

A banca e os pesquisadores precisam ver, no seu projeto de pesquisa ou plano de estudos, algo interessante, viável, e que possa ser adequado ao tempo de um mestrado caso eles julguem que não esteja (e que isso não tem problema; de fato, muitas vezes não tem, mesmo, já que a banca pode ter a noção de lembrar que você nunca fez mestrado antes). No texto do projeto ou do plano de estudos a tal da abordagem (leia na parte I) sobre o assunto de pesquisa precisa também ficar clara. Além disso, também é importante mostrar pra banca que você entende minimamente do que está falando e de que tem uma noção das outras abordagens possíveis, e se mostrar também aberto/a a discutir ou trabalhar com elas (ainda que fazendo um contraponto).

Nessa hora, fazer uma boa pesquisa bibliográfica é fundamental. Escrevi um post com algumas dicas aqui sobre como encontrar bibliografia relevante. Depois de encontrar, é claro, você vai precisar ler essa bibliografia e escrever sobre ela. O importante desse pedaço é tentar botar as coisas que você leu em relação umas com as outras, de forma mais geral, e não somente ficar explicando o que cada autor ou obra disse e deixou de dizer. Está aí o primeiro desafio real.

Escrever esse projeto de pesquisa não é fácil. Provavelmente depois que você entrar no mestrado ainda vai mudar o projeto, revisar, refazer, reescrever, etc. Não fique incomodado/a, é assim com a grande maioria das pessoas. Eu passei meio ano refazendo meu projeto quando entrei no mestrado. Ainda bem, pois não teria conseguido a bolsa FAPESP sem ter trabalhado tanto sobre ele. Ao mesmo tempo, refazer o projeto ajuda a ter uma visão cada vez mais clara do que é que você vai fazer, afinal.

Invista tempo no projeto de pesquisa antes e depois do processo seletivo, que ele é bem importante. Se tiver amigos ou amigas que estudam ou trabalham na mesma área peça para que leiam, comentem, apontem incoerências, erros. Se tiver amigues jornalistas, revisores, etc., peça para que dêem uma ajuda com o texto. Mude, revise, refaça, acate sugestões pertinentes, agradeça mas ignore aquelas que não forem tão pertinentes. Tente lapidar o quanto conseguir o projeto. É difícil, mas é possível, eu juro.


5. Processo seletivo, provas, entrevistas
Com o projeto bonitinho em mãos, e já inscrito/a na seleção, é importante se atentar para o funcionamento deste processo. Se você está aplicando para mais de um programa, pode ser uma boa olhar diferenças entre eles no que diz respeito à seleção. Examine os editais e veja os critérios de avaliação para todas as etapas.


Os editais, porém, dão uma ideia parcial de como é o processo seletivo. Há algumas sutilezas que nem sempre os editais mostram. Quase nunca, na verdade. O tipo de questão que contém as provas, por exemplo. Ou o que perguntam na entrevista. Como são os professores da banca. Tantas coisas que te ajudariam se você soubesse...

... por isso outra dica é conversar com alguém que já tenha feito esse processo, pra saber qual é o rolê. Como foi, o que a pessoa percebeu que contou a seu favor, o que ela teria feito diferente, etc. Faça uma entrevista completa com seus amigos e amigas, porque vale a pena. Informação ajuda nessa hora, e muito.



6. Bolsa
Este é um ponto a se considerar antes, durante e depois da seleção do programa de mestrado dos seus sonhos. Dedicar-se exclusiva e totalmente à pesquisa é uma delícia, mas pra isso em geral é preciso uma bolsa. As faculdades e institutos de universidades federais e estaduais, em geral, recebem um número X de bolsas do CNPq e da CAPES e distribuem conforme os critérios que acham melhor. Algumas fazem ranking da seleção e os primeiros recebem bolsa, outras selecionam o número de alunos igual ao número de bolsas e todo mundo que entra recebe bolsa, outras fazem sorteio, outras usam critério socioeconômico. Enfim. Cabe ao programa definir a atribuição de bolsas. Dê uma investigada nisso e se prepare pra mandar papelada, etc. Esteja alerta.

Em alguns estados (como São Paulo) outras agências financiadoras (como a FAPESP) também dão bolsas de pesquisa, diretamente concedidas ao orientador/a e ao mestrando ou à mestranda. Em geral existe um processo seletivo paralelo e vale a pena dar uma boa pesquisada e, depois de aprovado/a, conversar com o/a orientador/a pra acertar ponteiros também sobre isso. Bolsas FAPESP merecem um post à parte, no futuro.


7. Fuçar, fuçar, fuçar
Em suma, a dica é: se informe muito. Muito mesmo. Até o talo. Chafurde na informação. Use e abuse da internet pra isso. Visite os sites dos programas, dos departamentos, leia currículos Lattes, busque artigos no Scielo e no Google Acadêmico, converse com pessoas. Tudo que você puder saber vai ajudar muito!

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Com esta parte II encerro a série "Quero fazer mestrado. E agora?". Mais sugestões de posts serão muito bem aceitas; peço que usem a caixa de comentários ou meu email para isso. Me dêem, por favor, um feedback: ajudei em alguma coisa?

Quero fazer mestrado. E agora? (parte I)

Este título foi quase exatamente como uma leitora com apelido de Miss Little me sugeriu escrever esse post. Demorei mais de mês, é fato, mas cá está ele. Um post, como ela disse, "sobre o início", "o que fazer quando se decide 'quero o mestrado'. Enfim, um help para os iniciantes inspirados!". Ou pelo menos é isso que tentei fazer aqui.

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1. Fazer ou não fazer mestrado: eis a questão
Eu confesso que talvez não seja a melhor pessoa pra dar este tipo de dica. Principalmente porque eu não planejei fazer mestrado, nunca quis fazer mestrado. Quer dizer, até eu decidir fazer, vendo a oportunidade. Há quem tenha a carreira acadêmica, ou ao menos um mestrado, como meta clara desde o início da graduação. Eu fiz iniciação científica pra ver como era, e tinha muita certeza de que não seria acadêmica. Ironias da vida. Meu segundo projeto de IC foi aprovado por um parecerista e rejeitado por outro. O parecerista que aprovou sugeriu transformar num projeto de mestrado. Claro que eu fiquei #chatiada e decidi me formar e ir embora da academia. Só que a academia não foi embora de mim.

Depois de me formar consegui um emprego com um salário legal. Logo no começo do ano, neste novo emprego, minha orientadora de IC me perguntou se eu tinha pensado em prestar a seleção do mestrado para o ano seguinte. Ela não iria me ajudar com o projeto (por razões óbvias de evitar favorecimento), mas estava interessada em saber se eu participaria do processo. Por alguma razão oculta de destino, divindade ou karma, eu disse que sim. E me pus a elaborar projeto, o que eu não tinha feito até ali. Acho que estávamos em Maio, e a seleção era no início de Agosto. Corri.

Só descobri que eu queria mesmo seguir carreira acadêmica, como acho que quero (ou sei que quero?), depois de alguns meses fazendo mestrado. Essa é a vantagem, me parece, de fazer mestrado, em especial com bolsa de pesquisa. É uma espécie de teste que você pode dar a si mesmo. Um experimento. A iniciação científica é em geral muito curta e pontual (e feita durante muitas disciplinas de graduação) pra que se tenha uma ideia do que é, de fato, este trabalho de fazer pesquisa 24x7, publicar artigos, ter o trabalho debatido em congressos, etc. etc. etc. Então, antes de decidir fazer o mestrado, é preciso decidir se e por que você quer fazê-lo, mesmo.


2. Que mestrado? Sobre o quê?
"Mestrado", na verdade, é um termo geral. É um tipo de curso. Dizer "quero fazer mestrado" é parecido com dizer "quero fazer graduação", no sentido de que ambas as frases não dizem nada do que você quer fazer. Curioso, não? Assim como na graduação, é preciso escolher um curso de mestrado. É aí que o bicho pega.

A pesquisa em geral tem uma flexibilidade de fronteiras maior do que a graduação. Em geral escolhemos graduação pela profissão que nos cativa, ou por um assunto que nos interessa, ou por uma disciplina que curtimos no ensino médio. Depois de ter estudado na graduação, conseguimos compreender o quão vasto é aquele campo de trabalho que escolhemos, descobrimos uma série de possibilidades que nem imaginávamos ali. Por isto a pergunta sobre que curso de mestrado é melhor fazer só pode ser respondida junto com a pargunta sobre o assunto que você deseja estudar.

Se tem um conselho legal que eu recebi da minha orientadora no início do mestrado foi este: escolha um assunto que te fascine da forma mais profunda possível. A ideia do mestrado é, pela primeira vez na vida (em geral), ter uma experiência prolongada e muito aprofundada de pesquisa. Não é fácil, nem é pouca coisa. Se não escolhermos um assunto que nos engaja, envolve, que nos move, esse  processo fica ainda mais difícil. Já não é fácil com um tema de muito interesse. Com um tema escolhido por conveniência, ou por qualquer outro motivo que não seja o mais puro tesão intelectual, será sofrimento ao cubo.

Uma coisa que eu percebo conversando com pessoas que estão pensando em aplicar para um mestrado, é a dificuldade em delimitar este tema. Isso vale um post à parte, exclusivo. Mas a dica é que quanto mais completa a ideia inicial sobre seu tema, mais fácil será elaborar um projeto. Quer dizer, "feminismo no Brasil" não é um bom tema de mestrado, por exemplo. Por ser muito amplo, fica difícil escrever um projeto que dê uma boa ideia à banca sobre o que exatamente te interessa ali. Então vale se perguntar: que pedaço deste tema mais geral me interessa? Que perguntas eu consigo fazer para este tema? Que aspecto eu quero explorar ou descobrir nesse tema geral? Assim se começa a propor recortes (que, claro, podem e talvez devam mesmo mudar depois da entrada no programa de mestrado). 

Com esta ideia mais clara, ficará também mais fácil encontrar um programa de mestrado que ofereça linhas de pesquisa que tenham a ver com o que você quer estudar. A dica é entrar no site, fuçar as linhas de pesquisa e a produção dos pesquisadores vinculados. Não tem outra maneira de fazer uma boa escolha. Outra forma de escolher o programa é diretamente pelo orientador que você deseja.


3. Onde? Com quem?
Esta pergunta é fundamental. No mestrado, apesar do título de "Mestre" que você vai ganhar se defender legal, você não é mais do que um aprendiz. Let's face it: você nunca fez pesquisa nesse grau de comprometimento e aprofundamento em toda sua vida e precisa aprender como se faz. Nada mais justo. Então absolutamente tudo que você faz é responsabilidade também do seu orientador, mesmo quando ele ou ela têm a postura louvável de te dar uma certa independência (o que é sensacional, dizendo por experiência própria).

Além disso, como é quase diretamente daquela pessoa que você vai aprender e captar os macetes do trabalho científico, é bom que seja alguém que trabalhe numa linha de pesquisa e numa abordagem do assunto com a qual você se identifique. Por este motivo, também é razoavelmente importante que você se pergunte: afinal, com qual abordagem desse assunto eu me identifico? Reparem que a abordagem não é o mesmo que o recorte, de que falei no item anterior. O recorte é uma delimitação do assunto que você quer pesquisar. Só que mesmo algo já muito bem recortadinho ainda pode ser trabalhado de diversas maneiras. É aí que entra a abordagem.

Escolher abordagem e orientador/a também pode ser anterior a escolher o programa. Afinal de contas, de que adianta um programa com uma linha de pesquisa que trabalhe com o assunto que você quer, mas onde nenhum pesquisador faça pesquisas com a abordagem que você acha mais interessante? Eu respondo: nada. Passar dois a três anos brigando com pesquisadores mais experientes (ou até com departamentos inteiros) não é uma escolha muito sábia e te impede de aprender uma série de coisas. Essa escolha precisa ser bem feita. Claro que, sempre, na medida do possível. Vivemos na contigência, afinal.


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Há muito mais a fazer quando se decide fazer mestrado. Estes três pontos são o início do início. O próximo post (parte II) reflete sobre algumas outras coisinhas.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

elas, as cotas, na pós-graduação 'stricto sensu'

[este texto é parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra; leia outros textos sobre racismo e desigualdade racial no site da blogagem]

Integração racial é um tema duro. Duro porque mexe lá no fundo, numa culpa que ninguém gostaria de ter. Mas temos, e precisamos assumir. A culpa de descender de uma sociedade que lucrou explorando a diversidade racial e que se nega a olhar seus efeitos. A culpa de diretamente ter se beneficiado a vida toda de uma pele clara - você pode nem enxergar direito como mas, sim, se você tem a pele clara, se beneficiou da desigualdade racial e da escravidão de africanos, muito mais diretamente do que gostaria. Eu também.




Uma das consequências diretas desta exploração é o quase nulo acesso da população negra ao ensino superior, num geral, e em especial no sistema público (instituições estaduais e federais de todos os tipos). A consequência da consequência, é a ainda mais forte ausência de negros e negras entre estudantes de pós-graduação e, claro, trabalhando como professores destas mesmas universidades.

Ser professor de universidade pública no Brasil hoje, mesmo com tantos problemas na carreira, é uma posição de muito poder e de muito prestígio. Em primeiro lugar porque produzir o conhecimento e ter controle sobre os rumos da ciência é um tipo de atividade que acaba determinando uma parte do futuro da humanidade (ó, que profética; mas é assim mesmo, melhor ver as coisas como são). Determina-se como a sociedade pensa, dentro de que limites as inovações tecnológicas são feitas, etc. Além disso, existe uma associação muito forte desta posição com a produção de políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação (ou seja, com a continuidade desta posição social/profissional) e, de forma mais abrangente, com o Estado em geral, onde acadêmicos e acadêmicas inserem-se tanto em cargos do poder executivo, quanto como consultores/especialistas de agências, etc. Estão por toda a parte daquilo que é o maior poder da sociedade hoje. Não é pouca porcaria.

A ausência de pessoas negras nestas posições (assim como em outras posições políticas e/ou ligadas ao Estado) é outra consequência nefasta não apenas da escravidão de povos africanos, mas de políticas de Estado declaradamente racistas implementadas após a abolição. O curioso é que mesmo gente que defende cotas raciais no ensino de graduação, se recusa a aceitá-las na pós-graduação stricto sensu (lembrando que a pós-graduação pública no Brasil é quase inteira stricto sensu e voltada à formação de recursos humanos para a ciência). Se o mito da meritocracia no vestibular está caindo por terra, é preciso que fiquemos atentos ao mito da meritocracia também na pós-graduação.

O que se propõe, quando fala-se em cotas raciais na pós, não é que se aceite pessoas pouco preparadas, projetos de pesquisa irrelevantes, etc. "tudo em nome das estatísticas". O que se propõe, muito ao contrário disto, é que os processos de seleção dêem preferência a candidatos e candidatas negros e negras igualmente competentes com seus competidores brancos (lembrando ainda da enorme escassez de vagas e bolsas nestes programas). É preciso enegrecer a universidade por inteiro, e não apenas no pedacinho que forma mão de obra para diversas fatias do mercado de trabalho não-acadêmico. É preciso enegrecer a ciência, também, e a gestão do Estado. Este e um possível caminho.

Neste ano, o programa de pós-graduação em antropologia da UFRJ/Museu Nacional foi o primeiro programa de pós stricto sensu (ao menos de que eu tive notícia) a decidir pela implementação de cotas raciais em seu processo seletivo, reparando historicamente grupos afrodescendentes e indígenas. Foi uma notícia e tanto, muito celebrada por muita gente, eu inclusive. Neste dia 20 de Novembro e em todos os demais dias deste e dos próximos anos, ela precisa ser lembrada e reivindicada.

Embora ainda haja outros tantos argumentos que sustentam a implementação deste tipo de política, deixo para a caixa de comentários o prazer de debatê-los. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

há vida lá fora : ou Gonzaga e o capital simbólico

É sempre quando vou ao cinema que me lembro: há vida fora da tela (do computador) e da janela (do meu quarto). Exagero, claro, eu sei que a vida esteve e está aí, o tempo todo. Mas tanto quanto os romances, a poesia e a literatura em geral, os filmes dão aquela refrescada necessária no cérebro viciado no pensamento científico. Mas também não é para tanto. Não dá pra deixar de ser acadêmica e olhar o mundo com o conhecimento acumulado, já que esse conhecimento é vivo, e os objetos e sujeitos de investigação estão ao nosso redor, e em nossa subjetividade. Pois bem.

Ontem fui assistir "Gonzaga, de pai para filho", um pouco desconfiada porque o diretor quase não mudou a fonte do título e o projeto gráfico de "Dois filhos de Francisco", seu megasucesso cinematográfico. Nada contra os filhos de Francisco, na verdade achei um filme bem interessante e bonito. Mas Gonzaga é outro papo. A narrativa é um pouco mais quebrada, na medida que um filme comercial permite. Intercalam-se cenas documentais com a ficção, que também não é tão ficção assim. Me parece que a diferença entre os dois filmes está justamente na forma de abordar a mitologia individual das histórias destes artistas. "Dois filhos de Francisco" é um filme que cria essa mitologia para artistas já conhecidos e consagrados da música popular; "Gonzaga, de pai para filho" é um filme que também cria uma mitologia, para o Gonzaguinha, enquanto bota em xeque a mitologia do rei do baião e seu pai, Luiz Gonzaga.

Além disso, há todo um tom interessante no filme que também desconstrói esse "pai santo" que aparece em "Dois filhos de Francisco". Luiz Gonzaga, como pai, ocupa papéis ambíguos ao longo do filme: um pai dedicado, mas que abandonou o filho pelo menos afetivamente, que deixou criar-se uma certa distância, que foi intolerante e errou muitas vezes. Formas de ser pai - imagino que ozamigue da antropologia que estudam relações de parentesco, masculinidade e paternidade devam estar enchendo os olhinhos com este filme, e com muita razão. Tem ainda a desconfiança de que Luiz Gonzaga não seria o pai biológico de Gonzaguinha, e o filme acerta em responder a dúvida com um belo: "dane-se; quem se importa? era pai e pronto".

Mas é claro que, como eu não sou antropóloga, e estudo Bourdieu, foi ele que me veio à cabeça o tempo todo. Se eu estudasse os teóricos da Escola de Frankfurt, claro, esse post poderia ser completamente diferente. Como não é o caso, ao final do filme eu só conseguia pensar em que bom exemplo esses dois personagens da MPB eram para observar efeitos concretos de mudanças no mercado de capital simbólico. Quer dizer, Luiz Gonzaga se coloca num local consagrado, mas simplesmente não consegue (e não quer) se reiventar para atender às demandas desse mercado, que deixa de valorizar não só seu trabalho, mas toda a série de características dele mesmo. O grande artista dança, se veste com roupas exóticas, canta versos com palavras simples e populares, sobre a vida de um pedaço da população que definitivamente não é o dominante. Nos anos 70, o "grande artista" é outro, seu filho Gonzaguinha: estudou na universidade, se veste como todo mundo, deixa a barba crescer como todo mundo, toca violão, canta palavras complicadas e traços de uma vida que sempre foi urbana. Desse abismo vem a decadência de um, a ascensão de outro.

Não tenho pretensão alguma de que este post possa ser útil, de alguma forma "conteudista", para meu trabalho. Útil foi sair de casa, assistir o filme, ficar com essas coisas na cabeça que despejo aqui pra vocês. Me lembrou de que o cinema inspira, e muito, mesmo quando o assunto parece distante da pesquisa. E, para mim, não vale alugar ou baixar filmes, porque é todo o ritual de ir ao cinema que me ajuda a relaxar. Aí é com cada um.

Pra vocês, o cinema é também essa fonte mágica de inspiração? :)