segunda-feira, 15 de abril de 2013

a lousa

eu achei mesmo que logo todo mundo a usar lousa digital. que as escolas, alunos, pais professores iam ver a lousa cada vez mais como um apoio visual à explicação, e menos como uma referência concreta do conteúdo da aula. achava isso porque percebo que cada pessoa aprende de um jeito diferente. cada um interpreta o que o professor diz - e o que os colegas perguntam - de uma maneira. cada um faz um caminho lógico e um raciocínio pra compreender o conteúdo da matéria, e esse caminho tem a ver com a própria subjetividade e com as experiências de quem assiste a aula. bom, mas essa sou eu.

daí que meus alunos disseram que minha lousa é ruim.
e, olha, é mesmo.

é ruim, principalmente pro objetivo deles. já que minha disciplina não tem livro didático nem apostila, eu compreendo perfeitamente que busquem na lousa uma referência. e, como referência, sejamos sinceros, minha lousa é uma bela droga. tenho sérias dificuldades em fazer esquemas explicativos que não dependam de longos textos. em parte porque acho que eles não funcionam, não explicam nada, e não ajudam meus alunos a responderem o tipo de questão que eu elaboro para suas provas, de cunho mais analítico. e aí, pra consultar como referência rápida da matéria, minha lousa de fato não presta.

isso não quer dizer que eu não possa aprender a fazer isso. talvez essa seja uma daquelas coisas muito úteis que eu estou esperando aprender com meus alunos. tem várias e antes de começar a dar aulas nessa escola eu até fiz uma listinha mental. quem sabe um dia eu escrevo melhor sobre isso. a lousa, então, acaba de ser incluída nessa listinha.

acho que vocês terão que me dar uma aula de lousa. vamos lá, molecada: o que é, afinal, uma "lousa boa"? como seria a "lousa ideal" de sociologia?

;)


quinta-feira, 11 de abril de 2013

bananada

banana é uma fruta fácil. biscate. se abre todinha. se deixa comer. banana é doce e vai bem com a picância da canela. substantivo feminino e sustância. banana menina, que tem vitamina. é a saia curta da chiquita bacana. banana é vida. come-se verde, come-se frita. amassada, madura, mordida. banana é história.

mexer a bananada é um ato de memória.
já nem sei desde quando, mas parece que foram umas terras griladas, dessas que nosso racismo em geral nos faz esquecer. o trisavô era analfabeto, fazendeiro de café e levou um golpe de um que dizia que seria seu genro. na verdade ele já tinha família e filhos e, letrado, passou os papéis da fazenda que ajudava a administrar todinhos pro seu nome. e o trisavô, daí, pra provar que não tinha autorizado nada? comofaz? os papéis todinhos com a assinatura dele - imagino um X, como o Dumbo. E agora, Joaquim? agora sobram poucas coisas que, vendidas, equivalem a umas terras de ninguém, no vale do ribeira. Banana, sabe? o negócio do futuro. pode confiar. das terras griladas, da opressão sobre as famílias descendentes de escravos e quilombolas que ali moravam (é justo, gente, tem até salário!), uma coisa boa. uma não, várias: bananada, banan frita, boizinho de banana, subir na bananeira, curau de milho fresco, ver os porcos, checar os pés pra ver se pegou doença, festa junina de verdade, pescar lambari no riacho, cachoeira (perigo!), ter medo de lagartixa, assistir ao fantástico domingo na parabólica daquelas que quando vem o comercial fica tudo preto (que não havia programação local pra ser colocada no ar, imagino que não seja o caso hoje). o temido quarto do vô, especialmente depois que ele morreu. um retrato num canto, a cama dura que só ela. umas aranhas aqui e ali. a cadeira de arame na varanda e os carros passando, rumo ao litoral. é Iguape ali, já? depois voltar à escola. e comer, lembrando e lambendo, pão com a bananada da mãe crescida em meio ao bananal. esse eu não dividia com os colegas. nem que me pagassem.

mexer a bananada é um ato de paciência.
- mãe, já tá pronta? - e assim se aprende a cozinhar. olha aqui e ali. mede cheirando, tocando, vendo. se não der certo de primeira, ajusta. é só pensar na função de cada ingrediente. a mãe ensina a lógica da cozinha. o pai faz torta de palmito. a vó liga pro disk-pizza porque já não agüenta isso de cozinhar. a outra vó, causando ciúmes na primeira, esbanja manjares e banquetes e quitutes e dotes culinários. é dela a bananada; é dela o curau de milho; é dela o doce de abóbora no cal. a comida tem seu tempo, e é preciso respeitar. a bananada só pega gosto quando bem cozidinha. o curau de milho é preparado em tantas etapas. o doce de abóbora precisa fazer casquinha mergulhado no cal. não tem jeito. a pressa é inimiga da vida no sítio.

mexer a bananada é um ato de amor.
em dias como esses, em que só uma bananada salva. provar devagarinho e tatear na língua a mudança de gosto de textura. o fogo basta, sozinho (e mais um punhado de determinação e perseverança do cozinheiro) pra que a banana vire doce. é cheinha de açúcar, ela. o fogo é mesmo um troço mágico. bananada tem gosto de amor. amor daquele quentinho. amor de quem fica mexendo a panela, e amor da pequena eu, espiando em volta. amor de quem deixa as receitas escritas. amor de saudades tantas. bananada é vó, é tia, prima, é mãe e irmã. bananada é a finitude, a morte que vem, a morte que vai. bananada é vida denaturada, fervidinha e derretida no fogão. é lenta, feito eu. cheira bem. estamos todas ali, em volta da colher de pau, raspando o tacho, rabiscando em papéis, esperando o dia de chuva passar. além da bananada, tem os bolinhos recheados da matéria-prima. eu e as minhas primas, entre as bonecas e instrumentos musicais, na hora do lanche. casa de vó. casa de vô. isso tudo é o sabor da bananada, derretida e queimada, que mexo vigorosamente sem me distrair. dizem comfort food, por aí, mas eu sei: bananada é comfort day.

por que corremos? (2)

Eis que, sem perceber, estávamos os três ali, no meio de um bar – onde mais? – falando de morte, de sobrevida, falando de dor. Falávamos daquilo que era íntimo, privado. Falávamos do que sequer se fala na intimidade, muitas vezes. Na mesa do bar, enquanto o resto do mundo assistia o Wanderlei Silva ganhar a luta que talvez tivesse sido a última de sua carreira. Trinta e quase-quarenta anos, Wanderlei, é hora de se aposentar, tu não sabia? Era o soco da tevê, do punho do Wanderlei, ali no meu estômago. A mãe dela estava morrendo. A mãe dele morrera havia alguns poucos anos. Estávamos juntos e juntos ficaríamos. Somos jovens. Por enquanto. Como nossos pais. Vivemos. Não estava escrito que eles morreriam assim, cedo. Uma vez li em algum lugar da psicologia (era Freud?) que o nosso inconsciente se regozija com a morte alheia. Nos dá a sensação de estarmos mais vivos. Um aproveitamento, uma felicidade de viver. Agradecemos que não somos nós morrendo. Mas dessa vez os intelectuais estavam errados, que quando morrem nossos pais, morremos nós um pouco também. A vida é se ir morrendo, não tinha um poeta que dizia isso? As mortes de outros participam das nossas, quase sempre devagar. Na iminência da morte, nos preparamos, fazemos planos. Ali no bar, ela pedia nosso apoio, nosso abraço. Pedia espaço e casa e amor e acolhimento, quando a hora chegasse. Estaríamos lá para ela, claro. Fico feliz de poder estar. Já tínhamos perdido um amigo em comum e a mãe desse que compartilhava a cerveja. 

É estranho quando morrem os pais de amigos nossos. Podiam ser os meus. Podia ser minha mãe. Sem falar na responsabilidade dos pais de amigos pela existência desses amigos na terra, e em nossas vidas – às quais sou eternamente grata. Pais de amigos nos acolhem, como amigos. Nos vêem crescer. Fazem companhia. Dividem preocupação. Criam limites e barreiras e outras vezes ajudam a superá-las. Dizem coisas bonitas. Parecem quase sempre mais legais que nossos pais; parecem quase sempre mais irritantes que nossos pais. As regras são eles que fazem, e muitas vezes são outras.

Gostava, quando era pequena, de ir dormir na casa de amigos. Era praticamente uma experiência antropológica; uma incursão no desconhecido. Na casa de uma amiguinha, tínhamos que tirar os sapatos para entrar sem fazer muita sujeira. Na casa da outra, só comida macrobiótica e nada de tevê. Na outra, um lanche servido pontualmente no mesmo horário todos os dias, e uma coleção de fitas de vídeo cassete pra passar as tardes. A escola que eu frequentava tinha até uma atividade de sala que era uma visita à casa de cada colega. Íamos a turma toda, num dia agendado. Ver casas diferentes. Compartilhar a intimidade, perguntar sobre animais de estimação, tomar lanche e voltar pra casa pensando como seríamos nós, se viéssemos daquela casa, daquela família.

Uma antropóloga disse que a casa é feita das relações entre as pessoas, e que são essas relações, o parentesco, que dão significado aos objetos e à materialidade que ali está. Pois minha casa é, então, em tanto lugar.

Minha casa era ali, naquele bar.

* * *


This is how it works
It feels a little worse
Than when we drove our hearse
Right through that screaming crowd
While laughing up a storm
Until we were just bone
Until it got so warm
That none of us could sleep
And all the styrofoam
Began to melt away
We tried to find some worms
To aid in the decay
But none of them were home
Inside their catacomb
A million ancient bees
Began to sting our knees
While we were on our knees
Praying that disease
Would leave the ones we love
And never come again

On the radio
We heard November Rain
That solo's really long
But it's a pretty song
We listened to it twice
'Cause the DJ was asleep

This is how it works
You're young until you're not
You love until you don't
You try until you can't
You laugh until you cry
You cry until you laugh
And everyone must breathe
Until their dying breath

No, this is how it works
You peer inside yourself
You take the things you like
And try to love the things you took
And then you take that love you made
And stick it into some
Someone else's heart
Pumping someone else's blood
And walking arm in arm
You hope it don't get harmed
But even if it does
You'll just do it all again

And on the radio
You hear November Rain
That solo's awful long
But it's a good refrain
You listen to it twice
'Cause the DJ is asleep
On the radio
(oh oh oh)
On the radio
On the radio - uh oh
On the radio - uh oh
On the radio - uh oh
On the radio



* * *

Para Joana,
e para dois Pedros.

por que corremos? (1)

Jagger e eu seríamos um bom dueto. Somos, aliás. Ele cantando que está fora de controle, eu fora de controle há tempos, do lado de cá do ipod. Five. Minutes. Zero. Point. Five. Kilometers. Average. Pace. Nine. Minutes. Per. Kilometer. Parece um filme de ficção científica: o robô mede minhas distâncias, avalia meu corpo, me diz quanto ainda preciso correr. Now I’m out. Oh, out. Of control. É como se o mundo ouvisse a canção. Uma senhora brinca com uma criança no banco da praça, ao lado de uma bicicleta. Um velho barrigudo e magro colhe amoras do pé, a camisa xadrez surrada toda aberta. Em público. Um pai de óculos escuros observa o primogênito nas balanças e vejo os bracinhos do bebê chacoalhando fora do carrinho. A luz é amarela demais. A luz aqui é sempre amarela demais. Perto da rua, em outro banco. Esses bancos de cimento, antigos, sabe? Um homem de branco e estetoscópio está deitado, de olhos fechados. Não há hospitais. Talvez seja dentista. De estetoscópio? Curioso. Pode ter recebido uma notícia ruim. Pode ter brigado com a esposa. Pode ter sido demitido. Vai saber. Pode só estar com sono. Promoção dia da mulher, ai meu deus, que irritante, escova de photon, assim, com ph. Acho simpático. Passo pelo salão de beleza, vou atrás de uma água de coco, enquanto meu inseparável Jagger avisa que não quer ser santo, coisíssima nenhuma. Decido que preciso escrever. Decido que será um livro. Decido que chega dessa dor. Decido que não sou eu que decido nada. Volto correndo pra casa, com cuidado pra não amassar os caquis: a quitanda é no caminho. Gosto quando é época de caqui. Amo caqui.

*  *  *

I was out in the city 
I was out in the rain 
I was feeling down hearted 
I was drinking again 

I was standing by the bridges 
Where the dark water flows 
I was talking to a stranger 
About times long ago 

I was young 
I was foolish 
I was angry 
I was vain 
I was charming 
I was lucky 
Tell me how have I changed 

Now I'm out 
Oh out of control 
Now I'm out 
Oh out of control 
Oh help me now 

And the girls in the doorway 
And the boys in the game 
And the drunks and the homeless 
They all know me 

And the police on the corner 
Give a nod and a wave 
As they point me 
To my final destination

quarta-feira, 3 de abril de 2013

hay

daí que não se nasce mulher.
daí que pode-se tornar
mas recentemente descobri
também pode ser que não

é dessas descobertas que rompem com o senso-comum; é dessas descobertas que reorganizam em minha cabeça todas as possibilidades e elocubrações sobre o que seria, afinal, uma sociedade mais justa. é dessas descobertas que me botam em perspectiva, eu e minhas violências sofridas e praticadas (que viver é uma violência). descubro um lugar de opressor. eu, ora essa, que me julgava tão oprimida, vejo que minha existência oprime tanta gente. e não há nada que eu possa fazer sobre isso, exceto lutar para que deixe de ser vedade.

descobrir o lugar de opressor gera empatia. e empatia, se cuidada, às vezes gera amizade. e hoje celebro uma amizade dessas. uma dessas pessoas que mudou minha vida, que foi um marco na minha forma de pensar, agir, entender-me e os outros e o mundo.

mas aniversário é celebrar a existência.
e se eu, com minha existência, oprimo;
ela, com a sua, liberta.

liberta quem, como eu, precisou procurar uma nova posição e uma nova abordagem pra estar no mundo e construí-lo melhor; liberta quem, como ela, esteve desde sempre na incômoda e posição invisível de recusar um dos sistemas mais opressores e violentos que permeia nossas vidas - o gênero - e buscar transformá-lo no dia-a-dia.

daí que essa liberdade, Hay, é um aprendizado. eu, que sou louca por aprendizado, celebro hoje com você essa oportunidade. de quebra, a vida ainda me deu uma amiga, dessas com quem posso passar horas e horas conversando, decifrando, quebrando a cabeça, me frustrando, e assim por diante.

feliz aniversário, querida. hoje é dia de celebrar essa existência revolucionária que é você no mundo.