terça-feira, 20 de novembro de 2012

elas, as cotas, na pós-graduação 'stricto sensu'

[este texto é parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra; leia outros textos sobre racismo e desigualdade racial no site da blogagem]

Integração racial é um tema duro. Duro porque mexe lá no fundo, numa culpa que ninguém gostaria de ter. Mas temos, e precisamos assumir. A culpa de descender de uma sociedade que lucrou explorando a diversidade racial e que se nega a olhar seus efeitos. A culpa de diretamente ter se beneficiado a vida toda de uma pele clara - você pode nem enxergar direito como mas, sim, se você tem a pele clara, se beneficiou da desigualdade racial e da escravidão de africanos, muito mais diretamente do que gostaria. Eu também.




Uma das consequências diretas desta exploração é o quase nulo acesso da população negra ao ensino superior, num geral, e em especial no sistema público (instituições estaduais e federais de todos os tipos). A consequência da consequência, é a ainda mais forte ausência de negros e negras entre estudantes de pós-graduação e, claro, trabalhando como professores destas mesmas universidades.

Ser professor de universidade pública no Brasil hoje, mesmo com tantos problemas na carreira, é uma posição de muito poder e de muito prestígio. Em primeiro lugar porque produzir o conhecimento e ter controle sobre os rumos da ciência é um tipo de atividade que acaba determinando uma parte do futuro da humanidade (ó, que profética; mas é assim mesmo, melhor ver as coisas como são). Determina-se como a sociedade pensa, dentro de que limites as inovações tecnológicas são feitas, etc. Além disso, existe uma associação muito forte desta posição com a produção de políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação (ou seja, com a continuidade desta posição social/profissional) e, de forma mais abrangente, com o Estado em geral, onde acadêmicos e acadêmicas inserem-se tanto em cargos do poder executivo, quanto como consultores/especialistas de agências, etc. Estão por toda a parte daquilo que é o maior poder da sociedade hoje. Não é pouca porcaria.

A ausência de pessoas negras nestas posições (assim como em outras posições políticas e/ou ligadas ao Estado) é outra consequência nefasta não apenas da escravidão de povos africanos, mas de políticas de Estado declaradamente racistas implementadas após a abolição. O curioso é que mesmo gente que defende cotas raciais no ensino de graduação, se recusa a aceitá-las na pós-graduação stricto sensu (lembrando que a pós-graduação pública no Brasil é quase inteira stricto sensu e voltada à formação de recursos humanos para a ciência). Se o mito da meritocracia no vestibular está caindo por terra, é preciso que fiquemos atentos ao mito da meritocracia também na pós-graduação.

O que se propõe, quando fala-se em cotas raciais na pós, não é que se aceite pessoas pouco preparadas, projetos de pesquisa irrelevantes, etc. "tudo em nome das estatísticas". O que se propõe, muito ao contrário disto, é que os processos de seleção dêem preferência a candidatos e candidatas negros e negras igualmente competentes com seus competidores brancos (lembrando ainda da enorme escassez de vagas e bolsas nestes programas). É preciso enegrecer a universidade por inteiro, e não apenas no pedacinho que forma mão de obra para diversas fatias do mercado de trabalho não-acadêmico. É preciso enegrecer a ciência, também, e a gestão do Estado. Este e um possível caminho.

Neste ano, o programa de pós-graduação em antropologia da UFRJ/Museu Nacional foi o primeiro programa de pós stricto sensu (ao menos de que eu tive notícia) a decidir pela implementação de cotas raciais em seu processo seletivo, reparando historicamente grupos afrodescendentes e indígenas. Foi uma notícia e tanto, muito celebrada por muita gente, eu inclusive. Neste dia 20 de Novembro e em todos os demais dias deste e dos próximos anos, ela precisa ser lembrada e reivindicada.

Embora ainda haja outros tantos argumentos que sustentam a implementação deste tipo de política, deixo para a caixa de comentários o prazer de debatê-los. 

8 comentários:

  1. Marília, obrigada por sua colaboração na #BCMulherNegra deixando bem claro que cotas não significam despreparo <333

    Abraço!

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  2. Concordo... Infelizmente não tive negros nem em minha graduação, nem na pós graduação.

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  3. Acho interessante que a galera contra cotas gosta de exaltar exemplos sobre negros que chegaram ao poder, e o maior deles é o ministro do STF Joaquim Barbosa, mas essas pessoas esquecem para que serve um movimento, um ativismo. Ele contou a história dele e cortou um dobrado (deve ter omitido outras tantas situações que devem lhe doer até os dias de hoje), não estou -de maneira alguma- tirando ou diminuindo os méritos dele, por favor, mas se houvesse igualdade plena como ouço muitxs dizerem, precisaria desse sofrimento todo?
    Aí explico que casos como o dele são exceções, exceções que sofrem ainda hoje alguma hostilidade tão somente por serem exceções. Que a luta por direitos iguais busca tornar essas exceções inexistentes, que ter negros em todas as posições (dentro e fora do poder) e ter uma aceitação geral na sociedade deve ser tão normal como andar pra frente. Que ficar lembrando as exceções parece mais uma estratégia (ainda que inconsciente) de tirar o mérito das lutas alheias, parece q lutar pra que todos cheguem à cargos como o de Joaquim Barbosa sem ter que seguir o caminho tortuoso que ele seguiu parece menos importante, dada a exaltação que se faz sobre as exceções.

    Outra observação que acho pertinente, é falar da origem e significado de certas palavras/piadas. Primeiro, que elas não precisam o aval/ intenção de quem profere para propagar um racismo, logo, não se era sua intenção, agora já é tarde. Se não tem intenção de ser racista, não seja e não repita padrões e comportamentos racistas. O racismo se perpetua na repetição de padrões também; Segundo, normalmente determinados comportamentos/piadas foram criados com um intuito que NÃO É o divertimento ou o humor. Eles foram criados para submeter-nos todos, para ter efeito de escárnio, humilhador, colocando-nos como uma sub raça não digna dos mesmos direitos e tratamentos. Isso tanto é verdade que Hitler e outros tantos racistas usavam (e ainda usam) piadas com esse intuito e também na tentativa de normativizar o preconceito.

    Vi esses dias, prints de tweets onde uma pessoa tentava explicar porque cabelo ruim não era expressão racista. A pessoa simplesmente não conseguiu. Ficou repetindo a expressão, demonstrando desconhecimento da sua origem. Um horror. Mas muita gente acha mesmo que racismo não está associado à expressões como esta. Isso significa que Hitler, Monteiro Lobato com seus processos indiretos e outros tantos conseguiram o que queriam: normativizar o racismo. É tão normal que a pessoa nem consegue entender por que está sendo apontado preconceito ali.

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  4. Olá Marília!Mto bom seu texto e como vc abriu a caixa de comentários pra debates, gostaria de expor aqui minha dúvida quanto a cotas raciais.
    Primeiramente deixo clara minha posição, sou contra cotas raciais, seja na graduação, pós-graduação ou qualquer outra situação que a escolha das pessoas seja feita através de uma prova.
    Penso que negros são minoria em faculdades pois normalmente são maioria em colégios públicos que apresentam uma péssima educação e, por não receberem as informações acadêmicas adequadamente, não conseguem competir em uma prova de vestibular com aqueles que a recebem, normalmente brancos.
    Lógico q essa configuração é decorrente da nossa história de racismo e discriminação e lógico q isso está errado.
    Meu ponto é, a partir do momento que se constata que o acesso de negros à faculdades e etc é dificultada não pela cor da pele, mas sim pela educação que recebeu, deve-se tentar corrigir o problema atacando a causa, que é justamente a péssima educação recebida.
    Essa parcela da população não tem acesso à educação de qualidade pois, no nosso país, a educação de qualidade é paga e, por injustiças históricas, essa parcela da população normalmente é pobre.Ou seja, por causa do racismo histórico, a maior parte da população pobre é negra.
    Desse modo, ao meu ver, o certo é a aplicação de cotas sociais, que atacam a raíz da questão.
    Simplificando, ninguém não passa no vestibular pq é negro, não passa pq não recebeu educação de qualidade e não recebeu pq é pobre.
    Inclusive, o que está passando em branco na discussão das cotas e o q eu acho q teria um efeito muito mais imediato é a obrigação de cotas para negros em empresas privadas. Nesse caso sim o acesso é dificultado pela cor da pele da pessoa.
    Não sei se eu consegui me expressar claramente, mas fico sempre com essa dúvida.Quero deixar claro tbm que não quero ofender ninguém com meu comentário, quero apenas sanar essa dúvida e ter certeza que eu não estou deixando de enxergar nenhum lado da questão.

    Obrigada!

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  5. Oi, Marina! Eu acho que você expressou uma questão que muita gente pensa e é bem importante de entrar no debate: cotas sociais "versus" cotas raciais. Pessoalmente, eu sou a favor de que haja as duas. :)

    Tudo que você descreve sobre associação entre raça e posição social está corretíssimo, não tenho nem o que acrescentar e discutir. Inclusive pessoas brancas em condições sociais desfavoráveis também terão menos chances do que outras brancas em condições "melhores", certo? Acho que isso é consenso, é fácil da gente enxergar isso.

    Só que ao mesmo tempo que tem essa questão, tem outra que é bem mais difícil da gente enxergar... Uma criança pobre no ensino fundamental, sendo branca, é tratada de forma diferente pelos professores do que seus colegas negros. Essa criança, crescendo e depois de adulta, também é tratada de forma diferente pelos policiais, pelo mercado de trabalho e departamentos de RH, etc. Então tem as duas coisas: a desvantagem social E a desvantagem racial, somadas. Tem muitos trabalhos de anrtopologia, educação, etc. mostrando exemplos concretos desse processo subjetivo de discriminação. Não é uma coisa consciente, as pessoas não pensam que negros são piores, etc. mas é algo bem subjetivo mesmo. É o que chamamos de racismo estrutural. Se você der uma pesquisada simples no Google Acadêmico com boas palavras-chave certamente vai encontrar boas referências se desejar ler mais a fundo sobre este ponto específico.

    Eu discordo muito de que a seleção por provas seja meritocrática e justa, e aí vou botar na roda o livro "A Reprodução", do Bourdieu (embora pudesse indicar qualquer coisa dele sobre educação e sistemas educacionais, etc). Quer dizer: existe um grupo de pessoas na sociedade que tem o poder de definir como serão feitas estas seleções, que critérios serão cobrados, que matéria vai cair no vestibular. Este grupo não é universal nem socialmente heterogêneo. Pelo contrário, é um grupo muito pouco representativo da sociedade em geral. Aquilo que este grupo define como sendo o "requisito" para acessar a posições de maior prestigio (como uma vaga na USP) em geral é aquilo que para aquele grupo faz sentido. Vou dar o exemplo da norma culta da língua portuguesa, que foi o que trabalhei na minha iniciação científica: a escola ensina e cobra a norma culta da língua portuguesa. Isso é comum a todas as escolas e obrigatório pelo MEC. Só que é muito mais fácil aprender a escrever nessa norma para uma criança que vem desse grupo social (que definiu essa norma da língua como padrão, rquisito, legitima, etc), que escuta esse português em casa, do que pra uma criança que desde sempre na família e nas redes sociais onde está escuta e fala um outro português. O exemplo é meio bobo, e buscando artigos sobre "segmentação do sistema de ensino", "desigualdade e rendimento escolar", e Bourdieu, você acha isso melhor explicadinho. Mas o bottom line é que mesmo a meritocracia não é tão meritocrática assim, porque a distribuição de recursos financeiros e simbólicos não é igualitária.

    No caso da pós-graduação, ainda, os critérios subjetivos tem um peso grande. Quase sempre há uma fase se entrevista, por exemplo, seja pra fazer pós, seja pra concursos e seleções de professores universitários em universidades privadas.

    Faz sentido?

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  6. Olá Marília!
    Obrigada pela resposta!
    Vou pesquisar mais sobre o processo subjetivo de discriminação e tentar achar alguns desses trabalhos de antropologia q vc citou!
    Vlw msm!
    bju

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  7. Marina, se precisar de alguma ajuda na busca, me escreva em meu email! Deve ter ele em algum lugar aqui. :) Beijo!

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