sábado, 30 de março de 2013

ceviche

ele, o ceviche. nhé.

um belo dia, fez-se o ceviche.
(sim, digo que "fez-se" porque, no Brasil, pelo menos na ~capital gastronômica paulicéia global~ nunca havia se falado muito nele.)

passou a ser chamado de sashimi peruano; considerado uma opção boa e saudável pra comer peixe cru; uma alternativa ao restaurante japonês; etecétera e tal. um frisson, esse negócio de ceviche. ceviche pra cá, ceviche pra lá.

eu nunca tinha tido a oportunidade de comer um, mas achei que gostaria muito. afinal, pessoas e mais pessoas cujo gosto pra comida é confiabilíssimo me disseram que o trem era bão. se organizavam atrás do trio elétrico (vamos comer um ceviche? onde aqui tem um bom ceviche? moço, tem ceviche? puxa, pena que não tem ceviche!). e, como só não vai quem já morreu, lá fui eu.

ontem o marido, noob em ceviche como eu, propôs de, enfim, experimentarmos esse novo manjar dos deuses. no fim do dia fomos a um restaurante que tem as melhores comidas mexicanas que já provamos na cidade de Campinas, e pedimos um ceviche (que, ok, não é mexicano, mas confiamos demais na qualidade gastronômica do tal restaurante).

eis que vem o ceviche! habemus cevichem!

então eu dou uma olhada no prato. provo um pedaço do peixe com o molho.

nhé. não me convenceu.
mas como não me dou por vencida, eu sabia que tinha alguma coisa ali que eu tinha que curtir. tentei achar. 
e nada.

fiquei com a impressão de que é um prato de se comer em casa. é como ir a um restaurante pra comer picadinho. ou spaghetti ao sugo. se não for muito barato, num dia de muita pressa e com poucas opções, até que vale a pena.

e qual a diferença, então, pro sashimi, que também é peixe cru e tal, com menos preparação do que o ceviche? - Bom, não sei vocês, mas eu não saio de casa só pra comer sashimi. Seria mais fácil aprender a cortar o peixe, ralar gengibre, comprar wasabi e um bom shoyu. comer um prato muito simples em restaurante só vale a pena, pra mim, se for muito, mas muito bem feito, com ingredientes absurdamente incríveis, que valham o preço (que será caro).

eu sei, sou uma herege do ceviche. pode ser ainda, claro, que tenha sido um problema daquele ceviche específico. por isso estou coletando dicas de bons ceviches pra se comer em Sampa ou em Campinas. minha curiosidade gastronômica está em polvorosa, tentando desvendar o tal do ceviche.

por enquanto, eu sigo achando que era melhor ter pedido fajitas de filé mignon.

sexta-feira, 29 de março de 2013

a morte, surda, caminha ao meu lado

era um peixinho, Bining, não me lembro de que raça ou tipo. vivia numa garrafa d'água bem bonita, ao lado da tevê da sala. por algum motivo desses que não sabemos quando crianças, morreu. eu devia ter uns oito ou nove anos de idade. a imagem do peixe boiando, já em algum estágio de decomposição, naquela garrafa, me assombrava. me assombrou durante algum tempo. era uma mistura de ânsia de vômito, culpa, nojo.

minha mãe leu pra mim, na ocasião, "A Mulher Que Matou os Peixes", da Clarice. um dos livros de que mais gosto, até hoje.

um ano antes disso meu avô morrera. curioso é que minha reação foi mais forte pelo peixe, do que pelo avô. acho que o avô não era culpa minha; o peixe, de alguma maneira, era. minha irresponsabilidade custou a vida do Bining, ou pelo menos era isso que eu achava. o avô não era tão próximo, e eu era bem pequena. o velório do meu avô era um evento a ser comentado na roda de conversa, segunda-feira, na escola, e não ia muito além. o corpo humano preparado para o velório também é mais limpo, arrumado; o peixe já estava em decomposição. credo.

eu tinha um professora que perguntava "está pensando na morte da bezerra?" quando alguém não prestava muita atenção na aula. fui à escola, depois do enterro, querendo que ela me fizesse a pergunta, para responder que não, que estava pensando na morte do meu avô. e não estava. me distraí e, sem querer, prestei atenção demais na aula. droga. genética cê-dê-éfe é foda.

depois do meu avô, depois do peixe, fiquei alguns anos sem trombar com ela.

mas sabem que a morte é como a vida, e quanto mais a gente vive, mais a gente tromba com ela; aquela época em que precisamos lidar com a morte cada vez mais - porque deixamos de ser tão protegidos, e porque as pessoas que conhecemos só fazem envelhecer (e viver é se ir morrendo, não é?) - é também quando as crianças de nossa idade passam a ter filhos, e o mundo vai se repovoando de gente pra cada um que se vai.

parece bonito. e é. mas é triste também. dá saudade.

meu terceiro encontro com a morte foi dos mais dolorosos. meu melhor amigo, no segundo ano do ensino médio, num acidente imbecil em Paraty, dirigindo um carro. engraçado. doía mais antes. ano quem vem faz dez anos - dez, gente -. eu entro em sala de aula e percebo a discrepância, o degrau: nosso grupo de amigos cresceu, começou carreira, tem filhos, trabalho, prestação de casa, e ele ainda é o menino que não pôde deixar de ser. quase não dá mais pra ter saudades, porque ele não pôde fazer uma vida. ficou preso em outra época, em outra década, num universo paralelo chamado adolescência.

alguns anos depois eu já não precisava frequentar a escola, aquela escola onde ele pertencia, onde a carteira vazia me lembrava. era outra a escola agora, de gente grande, em outra cidade. minha vida era outra. mas nenhuma vida escapa à morte, e minha avó descobriu um câncer. poucos anos depois, o câncer se espalhou, não teve mais jeito, e minha avó deixou de existir em corpo, pra existir na memória. ou, como disse o raul seixas, nos seus filhos - e, no caso, netos, como eu.

desde que minha avó morreu, há seis anos, foi uma sequência razoável de encontros entre ela, a morte, e eu. ela mandou, quase sempre, nessas ocasiões, um mensageiro. esse horror chamado câncer. foi a mãe de um amigo. câncer. a mãe de outro. câncer. a avó do marido. minha outra avó. só no último mês, ela teimou em levar a mãe de uma amiga - mais câncer -, uma tia querida, e um professor.

não é uma mensagem? um sinal? que dizem os espíritas? os espíritos? por quê? por quê? por quê?

e não interessa, a bem da verdade. saber o por quê da morte não a torna menos morte; não torna a vida mais vida. essa oposição besta que fazemos ingênuos, como se duas pontas opostas de um barbante, unidas, não formassem um círculo.

talvez por isso eu tenha escolhido ser cientista, ser professora e escrever de todas as maneiras possíveis: tenho medo de não ser imortal. depois do meu avô e do meu peixe, encontrei uma frase do Dalai Lama, que talvez tenha mudado minha vida e moldado muitas de minhas escolhas. uma frase, vejam só. que coisa boba.

"compartilhar conhecimento é alcançar a imortalidade"

então, eis que eu, com medo de desaparecer, deixo todos os rastros que posso. este que vocês lêem, inclusive.

* * *



Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar

Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?

Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo,mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida

Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...

Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...

Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo,mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida

sábado, 16 de março de 2013

quem você quer ser?

me lembro de ser adolescente; me lembro duas vezes por semana, às vezes três, quando entro em sala de aula. cada sala tem mais ou menos sessenta carinhas, rostinhos, curiosos, cansados, desajustados, esperando alguma coisa de mim. esperando o quê, exatamente, eu não sei. achei que sabia, mas agora não sei.

enquanto eu falo de marx - ah, marx, que nos deixa tão fascinados na adolescência, sem nem sabermos muito bem o por quê -, ou explico que era contra as cotas raciais quando estudante branca de ensino médio privado na capital-ó-grandiosa-paulicéia-do-estado e que mudei de opinião por meio da sociologia; enquanto falo da ciência e mostro que a sociologia serve (e como serve) até pra quem quer ser engenheiro; enquanto isso, enquanto aquilo;

eu lembro.

lembro que o mundo era só possibilidade, todinho ele. lembro que ainda é, na verdade, só que eu encontrei as possibilidades que eu queria pra mim e decidi, deliberadamente, abandonar as demais. ao menos por enquanto.

lembro de admirar os modernistas, tanto, tanto. lembro de, no início da graduação, achar massa a ideia de conviver com artistas. quem sabe eu mesma poderia ser escritora? o que seria de nós, afinal?

é gostoso agora, anos mais tarde, me descobrir assim; entre amigos e amigas que escrevem, que lidam com arte, com estética, com pensamento, com texto. e descobrir a beleza daqueles que lidam com outras coisas: arquitetura, engenharia, códigos de programação, operação de computadores do tamanho de uma sala.

lembro, olhando meus alunos, que as possibilidades que eu achava tantas não eram nem a quarta parte do que viriam a ser. o mundo é mesmo um troço incrível.

terça-feira, 12 de março de 2013

a casa abandonada

era uma casa, muito engraçada; só que não.

sabem quando a vida chama loucamente? quando a urgência é tanta pra tudo que a gente esquece das urgências urgentes de antes? pois sim. foi isso que me aconteceu. aconteceu a preguiça de montar um móvel todinho do zero, de novo, porque era o único tempinho que eu teria livre, nos últimos dias dos últimos meses. a furadeira que teve que esperar mais um pouquinho. mas o que era, afinal, mais urgente que as urgências?

era a vida. e a morte.

era o trabalho; sempre ele.

agora eu espero ansiosamente o final de semana, quando provavelmente os planos de casa entram nos eixos. prateleiras, instrumentos musicais pendurados nas paredes, quem sabe até quadros num futuro próximo. quem sabe.

por enquanto sigo na agonia de entregar tudo, de não ter férias.
ah, que eu ando precisando.