É sempre quando vou ao cinema que me lembro: há vida fora da tela (do computador) e da janela (do meu quarto). Exagero, claro, eu sei que a vida esteve e está aí, o tempo todo. Mas tanto quanto os romances, a poesia e a literatura em geral, os filmes dão aquela refrescada necessária no cérebro viciado no pensamento científico. Mas também não é para tanto. Não dá pra deixar de ser acadêmica e olhar o mundo com o conhecimento acumulado, já que esse conhecimento é vivo, e os objetos e sujeitos de investigação estão ao nosso redor, e em nossa subjetividade. Pois bem.
Ontem fui assistir "Gonzaga, de pai para filho", um pouco desconfiada porque o diretor quase não mudou a fonte do título e o projeto gráfico de "Dois filhos de Francisco", seu megasucesso cinematográfico. Nada contra os filhos de Francisco, na verdade achei um filme bem interessante e bonito. Mas Gonzaga é outro papo. A narrativa é um pouco mais quebrada, na medida que um filme comercial permite. Intercalam-se cenas documentais com a ficção, que também não é tão ficção assim. Me parece que a diferença entre os dois filmes está justamente na forma de abordar a mitologia individual das histórias destes artistas. "Dois filhos de Francisco" é um filme que cria essa mitologia para artistas já conhecidos e consagrados da música popular; "Gonzaga, de pai para filho" é um filme que também cria uma mitologia, para o Gonzaguinha, enquanto bota em xeque a mitologia do rei do baião e seu pai, Luiz Gonzaga.
Além disso, há todo um tom interessante no filme que também desconstrói esse "pai santo" que aparece em "Dois filhos de Francisco". Luiz Gonzaga, como pai, ocupa papéis ambíguos ao longo do filme: um pai dedicado, mas que abandonou o filho pelo menos afetivamente, que deixou criar-se uma certa distância, que foi intolerante e errou muitas vezes. Formas de ser pai - imagino que ozamigue da antropologia que estudam relações de parentesco, masculinidade e paternidade devam estar enchendo os olhinhos com este filme, e com muita razão. Tem ainda a desconfiança de que Luiz Gonzaga não seria o pai biológico de Gonzaguinha, e o filme acerta em responder a dúvida com um belo: "dane-se; quem se importa? era pai e pronto".
Mas é claro que, como eu não sou antropóloga, e estudo Bourdieu, foi ele que me veio à cabeça o tempo todo. Se eu estudasse os teóricos da Escola de Frankfurt, claro, esse post poderia ser completamente diferente. Como não é o caso, ao final do filme eu só conseguia pensar em que bom exemplo esses dois personagens da MPB eram para observar efeitos concretos de mudanças no mercado de capital simbólico. Quer dizer, Luiz Gonzaga se coloca num local consagrado, mas simplesmente não consegue (e não quer) se reiventar para atender às demandas desse mercado, que deixa de valorizar não só seu trabalho, mas toda a série de características dele mesmo. O grande artista dança, se veste com roupas exóticas, canta versos com palavras simples e populares, sobre a vida de um pedaço da população que definitivamente não é o dominante. Nos anos 70, o "grande artista" é outro, seu filho Gonzaguinha: estudou na universidade, se veste como todo mundo, deixa a barba crescer como todo mundo, toca violão, canta palavras complicadas e traços de uma vida que sempre foi urbana. Desse abismo vem a decadência de um, a ascensão de outro.
Não tenho pretensão alguma de que este post possa ser útil, de alguma forma "conteudista", para meu trabalho. Útil foi sair de casa, assistir o filme, ficar com essas coisas na cabeça que despejo aqui pra vocês. Me lembrou de que o cinema inspira, e muito, mesmo quando o assunto parece distante da pesquisa. E, para mim, não vale alugar ou baixar filmes, porque é todo o ritual de ir ao cinema que me ajuda a relaxar. Aí é com cada um.
Pra vocês, o cinema é também essa fonte mágica de inspiração? :)
Com certeza, fonte mágica de inspiração! Assisti esse filme e tb sai com a cabeça pensante, mas sem a preocupação acadêmica do pensante, apenas delírios....
ResponderExcluirConcordo muito com seu último parágrafo. :)
Com certeza, fonte mágica de inspiração! Assisti esse filme e tb sai com a cabeça pensante, mas sem a preocupação acadêmica do pensante, apenas delírios....
ResponderExcluirConcordo muito com seu último parágrafo. :)
Gostei muito do filme e confesso que topei assistir bastante desconfiada. Achei linda a cena que Luiz Gonzaga, depois de rever a família, retorna ao Rio de Janeiro e afirma carregar o sertão com ele daquela vez. E concordo, foi muito legal não colocarem o Rei do Baião num pedestal...
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